Leitura: Morte Súbita - J. K. Rowling

Resenha escrita por Matheus Monteiro.

  Nessa altura do campeonato todos nós sabemos o marco que Morte Súbita é na bibliografia de J.K. Rowling. Seu primeiro livro adulto foi uma das sensações editoriais na época de lançamento. A autora finalmente estava se desvencilhando da fama de Harry Potter e expandindo sua literatura para outros terrenos (anos depois, mostraria ainda mais ecleticidade ao lançar - sob pseudônimo - a saga de romances policiais de Cormoran Strike). Morte Súbita foi um sucesso, uma curiosidade quase incontrolável (Rowling realmente escreveria tão bem quanto sua saga de sucesso?) e ao mesmo tempo um divisor de águas, ainda que inegavelmente sua marca definitiva como escritora de várias histórias. Bom... Todos sabemos disso, mas alguém já se dispôs a ler tal obra? Muitas pessoas sim, e a divisão de gostos se mostrou: alguns odiaram, outros amaram. O meio termo virou algo impossível para esse livro. Mas por quê?
Gostaria de dizer que não julgo absolutamente ninguém que abandonou/não gostou de Morte Súbita. Gostos são gostos, e todos devem ser respeitados. Eu mesmo acho Dom Casmurro um porre, então vamos ser respeitados. Mas o motivo de não julgar é simples: Morte Súbita não é um livro que procura agradar ninguém. Ele não está nem aí para você.
A trama é realista e deveras interessante. Em uma cidade inglesa de nome Pagford, o chefe do conselho regional - Barry Fairbrother, personagem icônico da cidade e gerador de amor e ódio- morre de um aneurisma cerebral. Com sua morte, começa uma verdadeira disputa para quem conseguirá seu cargo no conselho, ao mesmo tempo que somos apresentados a vários núcleos de personagem que de uma forma ou de outra estão conectados e afetados pela morte desse personagem. E aí já começa o motivo de algumas pessoas não gostarem de Morte Subita: não há necessariamente um enredo linear de começo meio e fim, ou apresentação, desenvolvimento e clímax. Ainda que ocorra um clímax (mas próximo de uma catarse), o livro não tem necessariamente um foco. Em suas 500 páginas, Rowling cria uma trama coesa, mas repleta de visões e fragmentos, pontos de vistas e pontos de histórias, alguns conectados, alguns influenciando ou sendo influenciados por outros e tramas independentes. Morte Súbita se comporta quase como um frio e analítico estudo de personagens e vidas, e não há nenhuma intenção em ter algum foco nisso. Há vários núcleos, e nenhum é mais importante que o outro (assim como seria a vida, se você fosse reparar friamente), ainda que você possa se interessar mais por algum deles.
Não comentarei todos os núcleos, seria incrivelmente trabalhoso e até desrespeitoso com a obra, mas é inegável que tem um talento muito parecido com o que Stephen King aplicou em It: a de saber criar histórias verossímeis, reais e tão diferente uma das outras. Cada núcleo de personagens é distinto para o bem ou para o mal e provoca reações genuínas no leitor, sem precisar consumir páginas e páginas para isso. Rowling cria vidas verdadeiras aqui e nos apresenta com todas suas falhas.
Não sei se falhas pode ser o tema do livro, ainda que possa resumir bem a ideia. E esse é outro ponto que pode incomodar um leitor desavisado: é um livro sujo. Rowling chega a chocar com tamanha crueza que aplica em sua história. Não apenas por conter sexo,violência física e psicológica, automutilação, palavrão, traição, estupro (ainda que sim, esse seja um elemento que já pesaria o livro por inteiro), mas pela sujeira psicológica e social dos seus personagens. Chega a ser revoltante e desesperador a imensa hipocrisia, egocentrismo e falta de empatia dos personagens, que parecem sempre estar presos em um ciclo de fofocas, maldade, revolta, violência, falsidade, abandono e que só gera mais e mais danos (é interessante notar o tom de quase tragédia grega da relação dos pais e filhos desse livro). E pode ser que hipocrisia e egocentrismo não sejam assim tão nocivos, mas Rowling nos faz ver a pior versão dessas falhas e as piores consequências que elas causam.
E isso só deixa o livro ainda mais rico em sua narrativa e temática. Ao passar do aspecto introspectivo e psicológico dos seus personagens (a primeira metade da obra praticamente é a exposição dos efeitos que a morte de Barry causou nos personagens), Rowling mostra como essa toxicidade psicológica afeta relacionamentos e a própria sociedade (o arco de Krystal é um bom indicativo disso, além da própria disputa do cargo de conselheiro e em escala macro a briga de Pagford com uma cidade periférica que em poucos parágrafos é explicada uma rixa de anos sem parecer didático ou maçante), tendo essa visão ganhando força na segunda metade dos livros, quando os personagens atacam (conscientemente e inconscientemente) outros personagens e a reunião de dois ou mais só parecem resultar no caos.
Tudo isso é brilhantemente amarrado pela escrita coesa e sóbria de Rowling, que cria núcleos sólidos, uma análise psicológica e social brilhante, além de misturar política e drama realista de forma incrivelmente bela. Ela ainda traz emoções e reflexões diversas no caminhar de seu livro, quase como se nos apresentasse um sujo espelho para que olhássemos e refletíssemos sobre nós e os outros.
Ainda que não tenha necessariamente um foco, deve ser comentado o maravilhoso clímax que une todos os núcleos em dois acontecimentos paralelos. A força de Morte súbita explode em socos e fúria nesse clímax e assim como os personagens sobreviventes desses acontecimentos, talvez seja difícil voltar a rotina depois de tanto.
Morte Súbita é um intenso e poderoso livro sobre o pior lado de um ser humano, sobre nossa hipocrisia, nossa falta de empatia e egoísmo. Mais do que um livro político, é um livro sobre sociedade desde o básico relacionamento mãe e filha, até a dinâmica de uma comunidade. È um livro incrivelmente sujo e denso, chega a ser desconfortável lê-lo e algumas vezes só pedimos que Rowling pegue um pouco leve. Mas ela não pega. E só ganhamos com isso.

Morte Súbita - J. K. Rowling (Título original: The Casual Vacancy)
ISBN: 8520932533
Ano: 2012 - Editora Nova Fronteira
Onde comprar?

Sobre o Matheus Monteiro:
Matheus Monteiro nasceu em 1996 em Fortaleza, Ceará. É apaixonado pela cultura gótica, trilhas sonoras, filmes (principalmente os de terror ou do Darren Aronofosky) e por animais. Doces Pesadelos São Feitos Disso foi o seu livro de estreia, mas ele já conta com alguns outros títulos publicados e você pode encontrá-los na Amazon. 

Links para os livros:
Doces pesadelos são feitos disso: contos. (Tem post aqui no blog sobre ele)

Agradecimentos:
Matheus Monteiro e Thayná Porto por serem tão maravilhosos comigo e com o blog!
Muito obrigado, gente <3

E obrigado a você também por ler até aqui.
A gente se vê em breve.

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